Sophia de Mello Breyner Andresen

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só pra mim.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007



A Estátua

Nas suas mãos a voz do mar dormia
Nos seus cabelos o vento de esculpia

A luz rolava entre os seus braços frios
E nos seus olhos cegos e vazios
Boiava o rasto branco dos navios.

domingo, 2 de dezembro de 2007



Não se perdeu nada em mim

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

domingo, 28 de outubro de 2007



No mar passa

No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente.


Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite.


Musa

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.


Flores

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpia e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.


O vazio desenhava desde sempre

O vazio desenhava desde sempre a forma do teu
rosto
Todas as coisas serviam para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência.


Final

Mas na janela o ângulo intacto duma
espera
Resolve em si o dia liso.

sábado, 27 de outubro de 2007



Eu chamei-te para ser

Eu chamei-te para ser a torre
Que viste um dia branca ao pé do mar.
Chamei-te para me perder nos teus caminhos.
Chamei-te para sonhar o que sonhaste.
Chamei-te para não ser eu:
Pedi-te que apagasses
A torre que eu fui a minha vida os
sonhos que sonhei.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007



Prece

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

domingo, 9 de setembro de 2007



Dia do mar no ar

Dia do mar no ar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas

Dia do mar no meu quarto – cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos
deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.

Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas
que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as
nuvens.

sábado, 8 de setembro de 2007



As minhas mãos mantêm as estrelas,
Seguro a minha alma para que não quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007



Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007



Tu dormes

Tu dormes embalado nos rochedos
E aos meus ouvidos vem falar o vento
Escuto, busco, chamo e não respondes,
E todo o mundo se tornou fantasma.

Estou fechada, seuspensa, prisioneira
Queria voltar para fora, para o dia
Ressurgir, respirar, tornar a ver,
Mas todo o mundo se tornou fantasma.

E a voz do mar encheu o céu e a terra
Uma voz que está cheia e que se quebra
E nunca mais acaba.

Pássaros brancos cortam as janelas,
Anémonas cintilam nos rochedos:
Terror de estar sozinha e de escutar
Com este tempo morto entre os meus dedos.

terça-feira, 4 de setembro de 2007



Barcos

Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Seus olhos de estátua

E a curva do seu bico
Rói a solidão.


Fundo do Mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avançaNo desalinho
Dos seus mil braços,Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

domingo, 2 de setembro de 2007



Mar

I

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II

Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.

sábado, 1 de setembro de 2007



Atlântico

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.


Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Sophia de Mello Breyner Andresen
1919 - 2004