Sophia de Mello Breyner Andresen

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só pra mim.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008



Instante

Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio

domingo, 20 de julho de 2008



25 de abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

quarta-feira, 16 de julho de 2008




Inventei

Inventei a dança para me disfarçar.
Ébria de solidão eu quis viver.
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante às paisagens esperando
E ninguém me podia entender.

quarta-feira, 25 de junho de 2008



Procelária

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança a sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece a imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo.

sexta-feira, 20 de junho de 2008




Senti que estava às portas do meu reino,
Entre as sombras brilhavam as paisagens
Que os meus sonhos antigos desejavam.
Mas o terror expulsou-me das imagens
Onde já os meus membros penetravam.

sexta-feira, 6 de junho de 2008



Tudo

Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Onde invento o real.

À minha volta sinto naufragar
Tantos gestos perdidos
Mas a alma, dispersa nos sentidos,
Sobe os degraus do ar...

terça-feira, 3 de junho de 2008



Em nome

Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei

quinta-feira, 29 de maio de 2008



No alto mar

No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita.

O Sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.

Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.

São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abre neles os seus braços.

sábado, 24 de maio de 2008



Reino

Reino de medusas e água lisa
Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa

terça-feira, 20 de maio de 2008



A luz e a casa

Em redor da luz
Com sombras e brancos
A casa se procura

Minhas mãos quase tocam
O branco respirar
Da sua atenção pura

sexta-feira, 16 de maio de 2008



As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser vivo e total,
À agitação do mundo irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

quinta-feira, 15 de maio de 2008



Sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

domingo, 2 de março de 2008



Pooema perdido

Porque eu trazia rios de frescura
E claros horizontes de pureza
Mas tudo se perdeu ante a secura
De combater em vão

E as arestas finas e vivas do meu reino
São o claro brilhar da solidão.


Flores

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si.
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008



Terror de te amar

Terror de te amar num sítio tão frágil
como o mundo
Mal de te amar neste lugar de
imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008



Intervalo II

Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.